terça-feira, 12 de junho de 2012

A farsa do Fidalgo Aprendiz, D. Francisco Manuel de Melo

Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras

   D. Francisco Manuel de Melo
A farsa do Fidalgo aprendiz 

Trabalho apresentado na cadeira de História do Teatro em Portugal, regida pela Profª Doutora Maria João Brilhante.


O teatro que se fez em Portugal entre os séculos XVI a XVIII ficou marcado por uma grande diversidade – auto, que surge com Gil Vicente e trata de temas religiosos ou profanos; a comédia nova, seguidora do modelo da comédia humanista italiana e que podemos ver em Estrangeiros de Sá de Miranda; o teatro neolatino, que se faz pelos jesuítas no espaço da Universidade; e a comédia espanhola, que se enraizou em Portugal durante o período da ocupação espanhola (através das companhias espanholas ambulantes de comediantes) e cujos currais de comédia inspiraram, mais tarde, o Pátio das Arcas.
 Do século XVII, chegaram até nós poucas peças, das quais o Fidalgo aprendiz de D. Francisco Manuel de Melo [Anexo 1], que irei analisar.
D. Francisco Manuel de Melo é influenciado pelo teatro seu precedente e contemporâneo. Não esqueçamos que o repertório do século XVI continua muito presente, através das reedições de cordel e compilações de peças de grandes dramaturgos. Interessa, então, perceber essa influência sobre este texto em particular e seu modelo, tal como a sua relação com a representação - de que forma poderia ser projetado em cena.

                            Farsa do Fidalgo aprendiz


D. Francisco Manuel de Melo escreveu a farsa do Fidalgo aprendiz em 1646[1]. A sua publicação só se dá em1665, nas suas Obras Métricas, tendo sido feitas mais duas edições, respetivamente em 1676 e 1718.
O autor pertencia a uma família da alta nobreza, tendo feito parte da corte e sido educado no Colégio Jesuíta de Santo Antão. Encontrava-se, nesta altura, preso em Lisboa, acusado obscuramente de homicídio em Novembro de 1644 e lá esteve até à Primavera de 1650. As datas apontam para que o Fidalgo aprendiz tenha sido escrito na prisão, o que desacredita qualquer possibilidade desta ter sido representada na corte naquela altura, sendo mais fiável a interpretação de “Farsa que se presente a suas altezas” enquanto farsa digna de ser lida ou representada na corte futuramente, sendo esse o seu destino e não que tal já tenha acontecido.
A farsa poderá ter sido escrita visando alertar a Corte para a situação pessoal de F. M. de Melo, dada a semelhança da situação deste para com a da personagem principal (incriminada): O Fidalgo aprendiz fala de Dom Gil Cogominho[2], um burguês, que procura que o seu comportamento e atividades correspondam ao estatuto de fidalgo e, para tal, tem aulas de poesia, esgrima e dança. Faz-se acompanhar do seu aio Afonso Mendes e seu amigo Dom Beltrão. No entanto, estes seus dois acompanhantes montam-lhe uma cilada para lhe roubar a fortuna, aliando-se a Isabel, comadre de Afonso Mendes. Os dois compinchas procuram levar o fidalgo a querer casar-se com Brites (filha de Isabel), convencendo-o a ir busca-la a casa de Isabel. No dia em que D. Gil vai a casa da suposta amada, depara-se com Isabel que lhe põe uma trouxa às costas e grita para que a acudam, dizendo estar a ser roubada. Surgem D. Beltrão e Afonso enquanto agentes de justiça (“de beleguim”) e, dando ordem de prisão a Dom Gil Cogominho, ficam-lhe com o dinheiro que trazia nas algibeiras.
Esta peça é vista como uma evolução no teatro português, afastando-se dos versos líricos tipicamente vicentinos. Nesta farsa, o fidalgo é um “escudeiro enfronhado em cavaleiro”, ou seja, que sobrevaloriza as suas qualidades apenas por ser detentor de bens de fortuna.
A figura do fidalgo não é novidade, faz parte de diversos autos, vem já desde Gil Vicente, em personagens como o escudeiro Aires Rosado em Quem tem farelos ou o “Fidalgo de muito pouca renda” na Farsa dos Almocreves. No entanto, a atitude de D. Francisco Manuel Melo perante a personagem de Cogominho é diferente da de Gil Vicente para com os seus fidalgos, tanto na intenção estilística como na mensagem que pretende passar.
Gil Vicente entende o fidalgo pobre como parte de uma classe aristocrata em declínio, que não se consegue moldar a um Portugal próspero, cujo luxo e arte apenas é rivalizado pela corte do Papa[3] e Francisco Melo vê o fidalgo como um escudeiro que, por ser detentor de bens, parte para a aventura cortesã (a índole cómica surge, então, desta tentativa falhada da parte de D. Gil de agir como um fidalgo).
Neste sentido, Pero Marques em Inês Pereira[4] aproxima-se mais de D. Gil. No final da farsa, D. Gil Cogominho “carrega com a trouxa” da sua ignorância, ou seja, com a pena resultante de ter sido enganado e acusado de roubar a trouxa que Isabel lhe pôs às costas, vejamos o episódio final da farsa de Gil Vicente:

“INES Marido cuco me levades
E mais duas lousas.
PERO Pois assi se fazem as cousas.
INES Quanto vos quero;
Sempre fostes percebido
Pera cervo:
Agora vos tomou o demo
Com duas lousas.”
(vv. 1103 – 1110)
Apesar de no Fidalgo aprendiz este “carregar” não ser literal, não deixa de existir uma afinidade de situação, dado que Pero Marques carrega as lousas e Inês às cavalitas.
Há também outra semelhança no que diz respeito ao título de primogénito, ambas as personagens demonstram um orgulho em ser “morgado” [5]:
Gil […]
Olhai mestre eu sou morgado
não tenho irmão nem irmã
tenho um casal na Lousã
e não me quero arriscado”
(vv. 140 – 143)

“PERO Eu Pero Marques me digo,
Como meu pae que Deos tem.
Faleceo, (perdoe-lhe Deos,
Que fôra bem escusado)
E ficamos dous ereos,
Porém meu he o morgado.”
(vv. 280 – 285)

No que diz respeito à obra de António Ribeiro Chiado, podemos encontrar na Natural Invenção algo em comum com o Fidalgo aprendiz: o texto de Chiado fala de um nobre que está à espera de um autor para fazer uma representação em sua casa mas, no fundo, não tem meios nem condições para a fazer e receber as pessoas (embora as situações sejam diferentes, a ignorância perante as suas limitações é a mesma).
A preferência pela sua cidade, visível nas Práticas de compadres e regateiras, é partilhada não só por Gil Vicente e Chiado, mas também por Francisco Manuel de Melo nesta farsa, como podemos ver nas suas referências a Lisboa, de que são exemplo: “Chiado que é bairro mais povoado” (vv. 815/16), “Postigo da Trindade” (v. 883) e “Ressio” (v.11).
Expressões como “ser ginete e ser sendeiro” (v. 87), “quem tem boca vai a Roma” (vv. 559/60), “se não Conde, é Cond’Andeiro” (v. 20), “dou-o ò demo” (v. 27), “os peis havreis de pôr […] em polvorosa” (vv. 166 – 169), “eles bebem e homem sua” (v. 335) e “o mundo é bola” (v. 703) conferem um tom popular às falas de D. Gil. Este tom popular é algo que encontramos tanto em Gil Vicente, nos textos em saiguês principalmente, como em Chiado. Para além do tom, creio que se pode fazer uma analogia entre a situação de atraiçoado de D. Gil, a crítica que faz à corte, a sua confissão final:
“Gil […]
as cortes são arriscadas
 e vivem nelas as gentes
 não sendo as cousas presentes
 boas e más as passadas
[…]
Isto é treição
mofino[6] de mim cuitado.
[…]
Meu amigo dom Beltrão
e meu aio Afonso Mendes
amigo nem amo tendes
dom Gil tornou-se carvão
homens que vos enxeris
na corte como em bigorna[7]
vêde bem no que se torna
qualquer fidalgo aprendiz.” [8]
(vv. 766 – 769; 993 – 994; 1056 – 1065)

E a crítica de Paiva ao Paço e às traições que lá acontecem em Prática de oito figuras[9]de Chiado:
“Ó paço! Ó paço! Eu diria,
que és thesouro de maldades,
pois nos gastas as edades
no melhor da mancebia[10].
quem cuidasse,
ante que no paço entrasse,
o que ha-de ser ao diante,
certo que escolhesse ante
cousa com que se matasse
(…)
De lisonjas
andam como umas esponjas
maliciosos traidores;
e parecem em seus primores
que fazem vidas de monjas.”             

A confissão final do fidalgo aproxima-se da moralidade e não da farsa em si, dado que a experiencia se torna lição: D. Gil apercebe-se da sua inadaptação e do ridículo da situação ao “ andar posto em ser conde “.
Encontramos também a influência da comédia humanista italiana, nomeadamente, da comédia La Cortigiana de Pietro Aretino[11]. Ambos os criados têm uma visão dos amos enquanto pacóvios e sovinas:

“Afonso Deve-me já de reção
vai correndo por três meses
pedi-lhos quarenta vezes
não me diz nem sim nem não

tomei-lhe tamanho entejo
de zombar do meu suor
que mas que seja o que for
me hei de vingar de sobejo”
(vv. 718 – 25)

“ROSSO. Il nostro padrone è il piú magnifico gaglioffo, el piú venerabile manigoldo e 'l maggior sciagurato che sia al mondo [...].
CAPPA. Io l'ho visto camariero d'una mula, e or non si degna toccar l'oro macinato con guanti, e si Domenedio lo servissi no 'l contentarebbe mai. E' fa una galantaria con servitori: e' piglia famigli a provarsi un mese l'un l'altro. In capo al mese il povero uomo s'ingegna servire el meglio che sa per rimanere seco et egli gli dice: «Tu non fai per me, perch'io ho bisogno d'un piú da straziare: se io ti posso fare piacer niuno, parla, ma tu non sei per me».
ROSSO. Io so ciò che vuoi dire; a punto egli, con queste ribaldarie, è molto ben servito e non paga salario.”[12]

 Podemos, ainda, comparar a cena XII do ato IIº desta comédia, na qual se encontra Messer Maco de Siena em processo de aprender as “cortesanias”, quando recebe um mestre de poesia[13]:

 “M. AND. O che versi sentenziosi, pieni, adrucciolanti, dolci, dotti, soavi, arguti, vaghi, chiari, netti, ameni, tesi, sonori, nuovi, e divini.
M. MACO. Vi fanno stupire eh?
M. AND. Stupire, rinascere, e disperarmi; ma c’é un latin falso.
M. MACO. Quale, la nave in porto?
M. AND. Si.
ME. MACO. È licenzia poetica, e poi...”

Com a cena em que o Poeta se dirige a D. Gil e diz:
“Poeta Estão bem feitos
mas falta para dez um.

Gil Mestre não falta nenhum
são eles todos perfeitos?

Poeta Todos mas um falta.

Gil Eu sei
que não falta. Homem não vês
que de cada cousa dez
levam ũa para el rei?
Pois eu não sou dos de Malta
pago como paga o prove
de sorte que se tem nove
nenhum para dez lhe falta.”
(vv. 383 – 392)
Identificamos claramente, tanto no Fidalgo aprendiz como no “cardeal aprendiz”[14], um mestre de poesia que faz uma crítica aos versos recitados dizendo algo não estar em regra.
A relação de D. Gil e Brites aproxima-se da aventura amorosa aretinesca. Há uma cena da segunda jornada, em que D. Gil vai a casa de Isabel para se declarar a Brites e pensa que parece um cortesão (quando na realidade é gozado sem que o saiba), que se aproxima do diálogo entre Messer Maco e a criada Biagina:
“Batem à porta.
(…)
Isabel Quem é?
Digam fora: Dom Beltrão
e dom Gil minha condessa
homens de bem.
Isabel Brites não é para rir
ver qual vem homem de corte
o embusteiro[15]?
Digam fora: Mandais que possam subir?
Brites E decer quando lhe importe.

Entra dom Beltrão vestido de cortesão e dom Gil de estranha figura e muito enfeitado.
[…]
Brites Como é senhor vossa graça?
Gil Dom Gil Cogominho.
Brites Apelo Santiago.
Gil Estranhais? Sou de grão raça.
Brites Sede antes Gil cogumelo
ou saramago.”
(vv. 480; 487 – 94; 519 – 24, pp. 20/21)
Messer Maco tentando entrar na casa da amada, enquanto cortesão que, tal como D. Gil, acredita ser[16]:

“BIA. Chi batte?
M. AND. Apri al Signore.
BIA. Chi è questo signore?
M. MACO. Il Signor Maco.
BIA. Qual Signor Maco?
M. MACO. Qual malanno che Dio te dia, porca poltrona?
BIA. La Signora è accompagnata.
M. MACO. Cacciatel via.
BIA. Come via gli amici de la mia padrona?
M. MACO. Via si, se non a te darò una processione di ataffilate, et a lei farò un migliaio de cristei d’acqua fredda.
M. AND. Apri al cortigiano nuovo.
BIA. De le vostre, maestro Andrea.
M. AND. Tira la corda.
BIA. Ora.
M. MACO. Che dice ?
M. AND. Che vi adora.
M. MACO. Mora.
BIA. O che pazzarone.
M. MACO. Che barbotta ela?
M. AND. Si scusa che non vi conoscea.
M. MACO. Voglio esser conosciuto, voglio.
M. AND. Entri vostra signoria.
M. MACO. Lo entro, al sangue che… vi cheaverò tutte in camera.”
A meu ver, tanto o Beltrão como o mestre Andrea são quem melhor abraça o comportamento de um cortesão perante as circunstâncias (em oposição a Messer Maco e Dom Gil).
Vistas as parecenças da farsa para com a comédia italiana, passemos agora a analisar a influência do teatro espanhol. A estrutura do Fidalgo aprendiz aproxima-se das convenções de Lope de Vega, dividindo-se à espanhola, em três jornadas e não nas tradicionais cenas portuguesas. Em Arte nuevo de hacer comedias, Vega afirma que no primeiro ato define-se o tema e apresentam-se as personagens, no segundo o enlace dos acontecimentos, de maneira a que só na última cena se conheça a solução. O Fidalgo aprendiz segue estas regras, embora na primeira jornada só apareçam duas – D. Gil e Afonso – das cinco personagens principais, a ação que se desenrola na primeira jornada – lições dos mestres – não tem nada a ver com a segunda e terceira jornadas, que são numa linha cómico-romântica.
Pode-se falar também numa estrutura dual, influenciada por Lope e suas ações paralelas que se resolvem ao mesmo tempo. A ação principal da farsa não é muito complexa nem extensa, mas o enredo adquire estas características. O tema é uma personagem ingénua que é vigarizada com base num estratagema amoroso, no entanto, à ação principal, cómico-romântica, são adicionados episódios cómicos que dela não fazem parte, como os encontros de Dom Gil com os vultos ou as aulas com os mestres na primeira jornada.
Relativamente aos versos, interessa salientar que predomina na primeira e última jornadas a quadra, que equivale à redondilha castelhana - que Lope de Vega aconselha a usar em coisas de amor[17].
 Há quem considere o Fidalgo aprendiz uma peça anti-castelhana[18]. De facto, tal pode ser considerado se nos debruçarmos sobre versos como “descreo dos castelhanos” (v. 42) e, relativamente a Castela, “Para mudanças e danças/ todos sabemos mais que ela!” (vv. 210/11).
Temos também a presunção de Brites, numa crítica implícita, dado que a personagem se apresenta como uma moça interessada em cavaleiros corteses e que cantem bem, mas… em castelhano. Esta moça recusa-se a ouvir as canções portuguesas que D. Gil começa por cantar, considerando-as ridículas e rudes: “Ai! senhor eu não queria/ senão letra castelhana!” (vv. 575/76).
Não creio, no entanto, que Francisco Manuel de Melo procurasse, através do discurso de algumas personagens, passar uma mensagem política, mas, por outro lado, atingir uma ironia cómica, tanto que existe também uma crítica ao nacionalismo exacerbado: “ Alfonso Mendes vestido à portuguesa antiga” (I jornada, pág.1).
Isabel, comadre de Afonso e sua aliada no golpe contra D. Gil, assemelha-se à personagem Celestina na tragicomédia de Fernando de Rojas La Celestina: são ambas alcoviteiras que enganam para conseguir dinheiro. Certamente que as alcoviteiras de Gil Vicente também terão inspirado a personagem de Francisco Manuel de Melo e não só Celestina.
Tal como a personagem de D. Gil não se limita a ser influenciada por Messer Maco, como supra observado, também podemos identificar no seu comportamento patético uma semelhança com D. Quixote, na obra Don Quijote[19] de Cervantes, cujo comportamento não é muito diferente – D. Quixote tornou-se incapaz de distinguir o real da ficção e por isso é vítima dos que sabem fazer essa distinção, acreditando ser cavaleiro andante sem que o seja (D. Gil acredita ser fidalgo desenvolto e é isso que o acaba por trair).
Falámos já no tom popular existente nesta farsa, que está também presente nas obras vicentinas e do Chiado. Existem também algumas palavras e expressões de influência castelhana, nomeadamente: “tomas […] as de vila-diogo” (v. 171), “tomastes trabalho” (v. 119), “mal que lhes pês” (v. 2), “mentecato” (v. 276), “nacera” (v. 995), “pelão” (v. 689) e “estudantão” (I jornada, pág.13).
O Fidalgo Aprendiz não segue o modelo da comédia clássica, no entanto, concorda com Aristóteles[20] no que diz respeito às unidades de ação e tempo: A armadilha contra D. Cogominho decorre num dia, do amanhecer à noite – “Sai dom Gil como de por casa, gualteira, balandrau e chinelas” (I jornada, pág. 3), “ Já corre o sino.” (v.738), “sei que são horas/ irmão que vos recolhais.” (vv. 936/37). Quanto à unidade de lugar, Francisco Manuel de Melo não a segue, dado cada dia ter um cenário diferente – no primeiro dia a ação decorre na casa de D. Cogominho, no segundo na casa de Isabel e no terceiro e último nas ruas de Lisboa, pelo que a farsa teria decorrido em três dias caso tivesse sido representada.
A Lisboa que a farsa sugere é uma Lisboa sinistra, por onde andam vultos que “costumam encomendar as almas” (III jornada, pág.36). D. Gil demonstra até um certo medo: “vou-me aqui pelo Chiado/ que é bairro mais povoado” (vv. 815/16).
Quanto à projeção em cena, é necessário ter em conta as jornadas, como referido supra, pois estas não só permitem a mudança de cenário (casa de D. Gil/casa de Isabel/ Ruas de Lisboa), como poderá ter sido o próprio cenário a impulsionar a divisão da farsa em três jornadas.
A primeira jornada propõe que haja em cena um plano da casa de D. Gil (pintado num telão, por exemplo), no entanto, existem elementos essenciais para a representação da farsa, sem os quais esta não seria possível. No que diz respeito ao vestuário, seria necessário determinados materiais como “botas, barbas, festo[21], pelote, gorra[22](l.6, p. 1) correia de couro para usar a tiracolo com espada (l. 7, p. 1), “gualteira”[23], chinelas, apito (l. 1, p. 3), capote largo e comprido (v.12), cabeleira, “colete de anta”, capa – “embuçado” (l. 3, p. 4); dois “chapins”[24](v. 149). Seria também fundamental a presença de duas espadas (l. 6, p. 1 e l.3, p. 4), a existência de uma porta (v. 85 e l. 2 p. 4) por onde entram e saem as personagens, a materialização do meio vintém – pagamento ao mestre de esgrima (v. 195); e uma panela, que servirá de instrumento musical (vv. 227 e 238).
Na segunda jornada teríamos, provavelmente, também um telão a representar a casa de Isabel. É necessária a existência de uma porta, tal como na primeira jornada (l. 1, p. 20) e é possível que exista uma janela materializada em palco (v. 482), existe um estrado[25] para o qual Brites sobe (v. 484) e há também uma viola, com que Gil tangerá para Brites (l. 1, p. 23). No que diz respeito ao vestuário seria necessário roupa de cortesão, um vestuário aparatoso, com muito veludo (l. 3, p. 20 e v. 498) e os trajes de Isabel e Brites, adequados às damas da época – séc. XVII.
Por fim, a terceira jornada constrói uma imagem das ruas de Lisboa, de D. Gil perto da janela da casa de Isabel falando com ela, depois de a ter chamado atirando uma pedrinha [Anexo 2]. Para a realização desta jornada seria necessário criar a imagem de uma cidade à noite e da casa de Isabel, provavelmente o cenário que Serlio preconizou para a comédia [Anexo 3] poderia ser ajustado à situação. É fundamental a existência tanto da porta como da janela (l. 2, p. 39), uma janela com um “craveiro e uma rota[26]” e pode existir até mais do que uma porta (“e sai por outra porta dom Gil” – p. 30). É necessário uma pedrinha, que D. Gil atira à janela de Isabel, um pano (l. 3, p. 28), uma carapuça, novas barbas, “saltimbarca[27]e chuça de beleguim”, uma vara de alcaide[28], lanterna de furta fogo[29] (p. 28), uma toca branca, um cobertor, uma candeia (ll. 1/2, p. 29), um disfarce (ll. 2/3, p. 30), um avental (“mandil”) e cabresto (l. 1, p. 31), uma mantilha branca e uma capa negra (ll. 1/2, p. 32), “murrão”[30], duas espadas (vv. 831/32 ; l. 1, p. 33 e v. 889), troxas (vv. 981e 1028) e dinheiro (v. 1049), lembremo-nos dos “dez mil reis” que D. Gil prometeu levar a Isabel e Brites (v. 627).
È também importante criar diversos sons em cena, nomeadamente, o som do sino, que marca a hora do encontro/decisiva/burla (v. 738), o “ruído das cadeas de ferro”, que é quase como um prenúncio do que irá acontecer a D. Gil (l. 4, p. 30), o ladrar dos cães (l. 6, p. 30) e o som da campainha, que se encontra bastante presente nesta jornada (ll. 1/2, p. 35; l. 1, p. 36 e l. 1, p. 37).

Conclusão


Desta análise é de reter que o Fidalgo Aprendiz é uma farsa da autoria de D. Francisco Manuel de Melo, escrita na prisão em 1646 e digna de ser representada para o rei.
Fala de uma Burla a D. Gil, que acredita ser fidalgo desenvolto sem o ser e acaba por ser enganado e roubado pelos seus amigos Beltrão e Afonso, aliados a Isabel e Brites.
A personagem do fidalgo tem a sua origem nos autos de Gil Vicente e em António Ribeiro Chiado nas suas Práticas de compadres e regateiras. Podemos também fazer uma ligação com a Natural Invenção – ambos os textos falam de alguém que não tem noção das suas limitações.
As expressões populares que encontramos nesta farsa são comuns aos autos e algumas têm influência castelhana.
A última fala de D. Gil assemelha-se às moralidades, tornando-se a experiência lição. A farsa concorda com Aristóteles nas unidades de ação e tempo, mas pouco mais.
Sente-se também a influência da comédia italiana, nomeadamente, de La Cortigiana de Pietro Aretino: ambos os criados consideram os patrões sovinas e pacóvios; Messer Maco quer ser cardeal e para tal tem de aprender as “cortesanias” e D. Gil quer ser fidalgo e tem de aprender a comportar-se como tal, recebendo mestres; ambas as personagens recebem um mestre de poesia que critica versos que não estão segundo a regra e a relação amorosa é semelhante nos dois textos.
O Fidalgo aprendiz tem presente a comédia espanhola na divisão em três jornadas e a influência das convenções de Lope de Vega pode ser vista na estrutura dual que a farsa apresenta – com ações paralelas; na organização do enredo (tema/ apresentação de personagens/ enlace dos acontecimentos/ solução) e no uso da quadra.
A tragicomédia La Celestina de Fernando de Rojas parece ter parecenças com o texto de Melo quanto à natureza da personagem de Isabel (assemelha-se à alcoviteira e interesseira Celestiana) e também D. Gil pode ser associado a D. Quixote de la Mancha, personagem de Cervantes. A projeção da peça em cena obriga à disponibilização de diversos materiais (para as aulas com os mestres e não só) e de trajes adequados às personagens, tal como a reprodução de diversos sons em cena.
No fundo, o Fidalgo Aprendiz é uma peça especial e curiosa, pela sua particularidade, contendo em si todo um teatro de uma época – é a confluência do teatro português, espanhol e italiano do século passado e presente[31].

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Anexo 1 – Tábua biográfica de D. Francisco Manuel de Melo


1608 – Nasce;
1626 – Visita Madrid;
1627 – Sofre naufrágio quando na Armada Espanhola;
1635 – É armado cavaleiro e junta-se ao Exército de Filipe IV de Espanha;
1640 – Foi preso em Madrid, acusado de apoiar a independência de Portugal;
1644 – É novamente preso, desta vez em Portugal, acusado do assassínio de Francisco Cardoso; É condenado ao degredo em África, índia e Brasil; Publicação de Historia de los movimientos, separación y guerra de Cataluña;
1646 – Escreve o Fidalgo Aprendiz na prisão em Lisboa;
1650 – Escreve carta para Dr. Manuel Temudo da Fonseca; Há uma alteração na sua pena, no que diz respeito ao degredo no Brasil;
1651 – Carta de Guia de Casados;
1652 – Sai em liberdade condicional;
1655 – Vai para o Brasil, onde cumpre parte da sentença;
1658 – Regressa a Portugal, após a morte de D. João IV;
1660 – Publica de Epanáforas de Vária História Portuguesa;
1662 – Vai exercer diplomacia em Inglaterra, França e Itália;
1664 – Publica Obras Morales e Cartas Familiares;
1665 – 1ª Publicação do auto do Fidalgo Aprendiz em Obras Métricas em Lyon; Regressa a Portugal;
1666 – É escolhido como deputado da Junta dos Três Estados; Morre em 13 de Outubro;
1676 – Primeira edição autónoma do Fidalgo Aprendiz;
1718 – Nova edição do Fidalgo Aprendiz;
1721 – Publicação de Apólogos Dialogais;

Anexo 2 - Vide Maquete de cenário da peça "O Fidalgo Aprendiz", Raul Lino, 1931.

Anexo 3 – Vide Cenário da Comédia preconizado por Serlio.




[1] Na primeira edição lê-se «O Fidalgo aprendiz. Farsa que se presente a Suas Altezas», sendo que a designação «Auto do Fidalgo aprendiz» só surge nas edições posteriores.
[2] A título de curiosidade, no decorrer do trabalho descobri que existiu uma família de Cogominhos: Vide Maria Ludovina B. Grilo, O Concelho de Évora nas Memórias Paroquiais de 1758 (Conclusão). A Cidade de Évora. Évora: Câmara Municipal. 2ª Serie, nº 1, 1994-95: 89 – 156 e Vide José Augusto de Sotto Mayor Pizarro, «Relações político-nobiliárquicas entre Portugal e Castela: o Tratado de Escalona (1328) ou dos “80 fidalgos”», Revista da Faculdade de Letras, Porto, 1998:1255-1278.
[3] Portugal encontra-se nesta altura no apogeu expansionista.
[4] Vide Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira, Biblioteca Digital - Coleção clássicos da Literatura portuguesa, [s.l.], Porto editora, [s.d.].
[5] Vide Francisco Manuel de Melo, Fidalgo aprendiz, ed. José Camões [versão eletrónica].
[6] Infeliz.
[7] Referencia à tentativa de adaptação à vida da corte por parte de quem entra.
[8] Vide Francisco Manuel de Melo, op. cit., vv. 766 – 69; 993 – 94; 1056 – 65, pp. 30; 39; 41; 42.
[9] Vide Obras Do Poeta Chiado. Colligidas, Annotadas E Prefaciadas Por Alberto Pimentel, Lisboa: Officina Typ. da Empr. Litteraria de Lisboa, 1889: 4.
[10] Juventude.
[11] Autor que D. Francisco Manuel de Melo conhecia e ao qual faz referência em La Fistula de Vrania.
[12] Vide Pietro Aretino, La cortigiana,  ed. Giuliano Innamorati, Torino: Einaudi, 1970: 15.
[13] Vide Pietro Aretino, La Cortigiana, commedia e L’Orazia, tragedia di Pietro Aretino. Con prefazione di G. Stiavelli, ed. Giacinto Stiavelli, Roma: Edoardo Perino Editore, 1890: 52 – 53.
[14] Relembremos que Messer Maco de Siena vem para Roma para se tornar cardeal, o que implica que aprenda a ser cortesão.
[15] Intrujão.
[16] Vide Pietro Aretino, La Cortigiana, commedia e L’Orazia, tragedia di Pietro Aretino. Con prefazione di G. Stiavelli, ed. Giacinto Stiavelli, Roma: Edoardo Perino Editore, 1890: 110 – 111.
[17] Vide Lope de Vega, El arte nuevo de hacer comedias en este tiempo, ed. Biblioteca digital del ITESM - Eugenio Garza Sada, v. 312, p. 6.
[18] Portugal procurava, nesta altura, recuperar da ocupação espanhola e criar um sentimento de identidade nacional.
[19] Vide D. Quixote de La Mancha, vol. I e II, Espanha : Editores Reunidos, Lda. e R.B.A. Editores, S.A., [s.d.].
[20] Vide Aristóteles, Poética, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.
[21] Dobra ou vinco numa peça de tecido.
[22] Espécie de barrete.
[23] Carapuça de pastor.
[24] Chinelo ou sapato confortável que se usa em casa.
[25] Sobrado um tanto acima do chão ou de outro pavimento.
[26] Botânica: 1) cana-da-índia; 2) espécie de cipó ou junco.
[27] Antiga vestimenta rústica, aberta aos lados.
[28] Oficial de justiça.
[29] Lanterna que possui um dispositivo que, quando acionado, oculta a luz.
[30] 1) Extremidade queimada do pavio de uma lamparina; 2) Pavio de vela.
[31] Século XVI e XVII.