Drama na actividade doutrinária da Igreja na Idade Média
O surgimento do drama no seio da Igreja na Idade Média relaciona-se com as proibições e regulamentações impostas ao teatro na época, nomeadamente, às tragédias e comédias consideradas socialmente desreguladoras. As instituições religiosas fizeram cópias desses textos incorporando-lhes os valores e moral cristã e em 1207 foram proibidas todo o tipo de manifestações de prática teatral que não fossem de carácter religioso. O papa Inocêncio III estabelece, ainda, os princípios gerais para a missa e em algumas partes desse ritual podemos ver nascer o embrião do teatro católico. Assiste-se então entre o séc. IX e o séc. XIII ao surgimento, no meio religioso, do chamado drama laico que, confundido com o culto, procura fazer frente ao progressivo afastamento dos féis da Igreja (estes maioritariamente iletrados, não conhecedores do latim) através de pequenas representações de episódios bíblicos.
Drama litúrgico na cerimónia religiosa. Quem o praticava.
Inicialmente, o drama litúrgico insere-se na cerimónia religiosa enquanto pequenas ações dramáticas[1] (pequenos diálogos cantados em latim distintos da missa) que fazem parte do ritual e para os quais a missa é interrompida. A partir destas pequenas ações parte-se para representações como a Ressurreição de Cristo. O drama era praticado tanto por eclesiásticos como por seculares, sendo que as freiras não o praticavam.
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ramatizações de passos da Bíblia e os momentos determinados do calendário religioso em que ocorriam.
ramatizações de passos da Bíblia e os momentos determinados do calendário religioso em que ocorriam.
As dramatizações bíblicas eram realizadas segundo o calendário religioso, nas festas do ano litúrgico, como os documentos que chegaram até aos nossos dias confirmam, por exemplo, episódios do nascimento de Cristo decorriam na missa do Natal[2], tal como na festa e noite de natal decorriam representações do presépio e Reis magos[3]. Também nas procissões do Corpus Christi (quinta-feira que se segue ao domingo da Santíssima Trindade) aconteciam representações[4]. Mesmo quando estas representações se autonomizam da Igreja, continuam a seguir o calendário religioso, tanto que os milagres apenas decorrem nos dias de celebração dos respetivos santos.
Substituição da Igreja na produção de representações sagradas.
A partir do séc. XIII assiste-se a uma autonomização das representações sagradas. Ao mesmo tempo que estas representações se começam a afastar do objetivo primeiro da Igreja, misturando o litúrgico e o profano, surgem as confrarias que procuram promover o seu santo e, desta forma, a produção de representações sagradas começa a ficar ao encargo das confrarias, que as incluem no culto.
Onde tinham lugar e quem participava nos mistérios da Paixão.
Os mistérios da Paixão tinham lugar na praça central das cidades e todas as pessoas participavam, nem que fossem como figurantes. Eclesiásticos, civis, representantes das corporações, mesteres e ofícios artesanais, apenas com a sua presença, ao reunirem os “ricos” e os “pobres” representam a vida de Cristo.
Diferenças e semelhanças existentes entre as formas teatrais dos mistérios, moralidades e milagres.
Apesar de tanto os mistérios como as moralidades e os milagres representarem matéria religiosa, existem diferenças: Os mistérios consistem em representações da vida de Cristo e bíblicas (Ex.: mistério da Paixão decorrido em Valenciennes em 1547[5]); as moralidades apresentam representações alegóricas, ações em que se representam vícios e virtudes, procurando transmitir valores morais; e os milagres são representações baseadas na vida dos Santos, mas também da Virgem e até de certas personalidades da época (Ex.: Martírio de Santa Apolónia[6]).
A língua em que as representações de carácter sagrado tinham lugar.
As representações eram inicialmente feitas em latim nas igrejas, no entanto, com o chegarem às cidades através das confrarias e com a intervenção do povo nas representações, a língua progressivamente passou a ser a do local/país onde decorriam as representações de carácter sagrado.
O teatro profano na Idade Média.
O teatro profano é feito nas praças das cidades, nas feiras e nos palácios pelos jograis e companhias, que entretanto começam a surgir.
Proibições que envolvem clérigos e hipotéticas relações com «jograis, mimos e histriões» (Mário Martins apud Francisco Luiz Rebello, 1977: 28) apontam também para a existência de um teatro profano no seio das ordens religiosas, nas catedrais e mosteiros.
Assunto desse teatro e finalidade.
Era um teatro essencialmente de representações cómicas de matéria profana, do quotidiano. As farsas punham em evidência os maus comportamentos e, ao contrário da comédia, não acabavam bem, por norma, acabavam à pancada ou com alguém a ser castigado. Este teatro pode também conter matéria religiosa ou moral, no caso dos jogos (Ex.: Le Jeu d’Adam de Jean Bodel). Tinha como finalidade divertir, ao contrário do drama laico cujas características não eram lúdicas.
Nos palácios organizavam-se representações. Circunstâncias e regularidade.
Era comum a realização de pequenas ações teatrais que tinham lugar durante as refeições, ‘entre os pratos’ – entremezes; tal como de momos e outros divertimentos. As representações nos palácios aconteciam quando havia festas na corte, sendo que estas tinham uma regularidade diminuta, pelo que as representações ocorriam por altura de casamentos e em outras ‘ocasiões especiais’.
Tem-se conhecimento de representações em diversos casamentos, dos quais são exemplo: o casamento da infanta Mafalda com o conde Reimondo[7], de D. João I com D. Filipa de Lencastre[8], de Frederico III com a infanta D. Leonor[9] e do príncipe Afonso com Isabel de Aragão[10]. Estas representações, tal como as festas, alimentam o valor simbólico da corte e do rei, sendo representados diversos temas (como a história de Portugal ou grandes e importantes personalidades).
Um exemplo de momo que chegou até nós através de doc.
Um dos momos dos documentos realiza-se num palácio no centro da cidade, em que decorre uma ação simbólica representativa do poder e estatuto de Frederico III, recém-marido da infanta D. Leonor (tema). Segundo a descrição[11], encontram-se à porta do palácio sete eleitores do Sacro Império Romano-Germânico que elegem Frederico III Sacro Imperador Romano-Germânico.
Esta é uma representação em que os momos se encontram mascarados de «sete Eleitores do Sacro Império Romano» e de «senhor Frederico Rei dos Romanos».
Os momos e a festa.
Os momos são pequenas ações que constroem uma situação de ficção, simbólica, com um tema (Ex.: Desafio das justas[12]) e enredo em que se usa máscaras, mas sem intriga nem fala e que se insere na festa pelo tema (que se relaciona com a mesma) e pelas suas características lúdicas, de divertimento.
Características das representações medievais para que possam ser consideradas formas de espetáculo para-teatrais.
As representações medievais são consideradas formas de espetáculo para-teatrais porque são um tipo de espetáculo popular, podendo conter matérias religiosas ou profanas e encontrando-se limitadas pelas suas origens, não tendo uma orientação aristocrática, apesar de acontecerem também na corte, estas representações encontram-se ligadas à festa e também sujeitas ao seu tema.
Fig.1
Espaço cênico do Mystère de la Passion de Valenciennes
Paris, Bibliothèque Nationale
Fig.2
Martyre de sainte Appoline
[1] Vide Luiz Francisco Rebello, O Primitivo Teatro Português, vol. 5, Lisboa: Biblioteca Breve, 1977: 31.
[2] Vide Solange Corbin, Essai sur la musique religieuse portugaise au Moyen-âge : 1100-1385, Paris : Les Belles Lettres, 1952 : 292-293.
[3] Vide Constituições sinodais do arcebispo Luís Pires de Braga, Porto, 1477.
[4] Vide Mário Martins, «O teatro litúrgico na Idade Média peninsular», Estudos de Cultura Medieval, Lisboa: Verbo, 1969:24-25.
[5] Vide fig.1.
[6] Vide fig.2.
[7] Vide A. de Magalhães Basto [ed.], Crónica de Cinco Reis de Portugal, Porto : Civilização, 1945: 104.
[8] Vide William J. Entwistle [ed.], Crónica de D. João I, Lisboa: IN-CM, 1977: 208-209.
[9] Vide Luciano Cordeiro [trad.], «Uma Sobrinha do Infante Imperatriz da Alemanha e Rainha da Hungria», Lisboa: Imprensa Nacional, 1894, separata do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa.
[10] Vide Garcia de Resende, «capítulo 122», «capítulo 123», «capítulo 126», Vida e feitos del rei D. João II, [s.l.], 1545: 73c-74c; 74c-75c; 76d-77c.
[11] Vide Luciano Cordeiro, op. cit., pp. 854-856.
[12] Vide Garcia de Resende, op. cit., pp. 76d-77d.
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